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Entrando pela primeira vez na então abandonada Fábrica de Tambores da Pompéia, em ’76, o que me despertou curiosidade, em vista de uma eventual recuperação para transformar o local num centro de lazer, foram aqueles galpões distribuídos racionalmente conforme os projetos ingleses do começo da industrialização européia, nos meados do século XIX.
Todavia, o que me encantou foi a elegante e precursora estrutura de concreto. Lembrando cordialmente o pioneiro Hennebique, pensei logo no dever de conservar a obra.
Foi assim o primeiro encontro com aquela arquitetura que me causou tantas histórias, sendo consequência natural ter sido um trabalho apaixonante.
Na segunda vez que lá estive, um sábado, o ambiente era outro: não mais a elegante e solitária estrutura Hennebiqueana mas um público alegre de crianças, mães, pais, anciãos passava de um pavilhão a outro. Crianças corriam, jovens jogavam futebol debaixo da chuva que caía dos telhados rachados, rindo com os chutes da bola na água. As mães preparavam churrasquinhos e sanduíches na entrada da rua Clélia; um teatrinho de bonecos funcionava perto da mesma, cheio de crianças. Pensei: isto tudo deve continuar assim, com toda esta alegria.
Voltei muitas vezes, aos sábados e aos domingos, até fixar claramente aquelas alegres cenas populares.
É aqui que começa a história da realização do centro Sesc Fábrica da Pompéia. Existem ‘belas almas’ e almas menos belas. Em geral as primeiras realizam pouco, as outras realizam mais. É o caso do Masp. Existem sociedades abertas e sociedades fechadas; a América é uma sociedade aberta, com prados floridos e o vento que limpa e ajuda. Assim, numa cidade entulhada e ofendida pode, de repente, surgir uma lasca de luz, um sopro de vento. E aí está hoje, a Fábrica da Pompéia, com seus milhares de frequentadores, as filas na choperia, o ‘Solarium-Índio’ do Deck, o Bloco Esportivo, a alegria da fábrica destelhada que continua: pequena alegria numa triste cidade.
Ninguém transformou nada. Encontramos uma fábrica com uma estrutura belíssima, arquitetonicamente importante, original, ninguém mexeu… O desenho de arquitetura do Centro de Lazer Fábrica da Pompéia partiu do desejo de construir uma outra realidade. Nós colocamos apenas algumas coisinhas: um pouco de água, uma lareira.
A idéia inicial de recuperação do dito Conjunto foi a de ‘Arquitetura Pobre’, isto é, não no sentido da indigência mas no sentido artesanal que exprime Comunicação e Dignidade máxima através dos menores e humildes meios.
BARDI, Lina Bo. SESC – FÁBRICA DA POMPÉIA – Anotações pessoais apud Lina Bo Bardi / Marcelo Carvalho Ferraz, org. – 4.ed. – São Paulo: Instituto Bardi: Casa de Vidro: Romano Guerra Editora, 2018, p. 220.
Depois de cinicamente julgar esgotados o conteúdo e as possibilidades humanas do Movimento Moderno na arquitetura, aparece na Europa um novo lançamento: o Post-Modern, que pode ser definido como a Retromania, o complexo da impotência frente à impossibilidade de sair de um dos mais estarrecedores esforços humanos do Ocidente. A vanguarda nas artes vive comendo os restos daquele grande Capital. A nova palavra de ordem é: “chupar ao máximo os princípios da documentação histórica reduzidos a consumo”. A Retromania impera, na Europa e nos Estados Unidos, absolvendo criticamente os penetras da arquitetura, que, desde o começo da industrialização gratificam as classes mais abastadas com as reciclagens espirituais do Passado. Cornijas, portais, frontões, trifórios e bífores, arcos romanos, góticos e árabes, colunas e cúpulas grandes e pequenas nunca deixaram de acompanhar num coro baixinho, discreto e sinistro, a marcha corajosa do Movimento Moderno brutalmente interrompida pela Segunda Guerra Mundial.
É história velha. Estão voltando os arcos e as colunas do nazi-facismo, a história tomada como Monumento e não como Documento. (Michel Foucault: “L’Histoire est ce qui transforme des Documents en Monuments”. É justamente o contrário: a História é aquilo que transforma os Monumentos em Documentos. Claro que Monumento não se refere somente a uma obra de arquitetura, mas também as “ações coletivas” de grandes arranques sociais).
Conclusão: estamos ainda sob o céu cinzento do pós-guerra. ” Tout est permis, Dieu n’exist pas”. Mas o que existiu de verdade foi a Guerra, que ainda continua, como continuam as grandes resistências.
Tudo isso pode ser julgado uma premissa exagerada para a apresentação de uma simples cadeira de teatro-auditorium, mas esta nota antecipada sobre os equívocos europeus do Post-Modern (o Movimento Post-Modern, nascido nos Estados Unidos, adquiriu importância internacional na última Bienal de Veneza, reacionário e anti-atual confunde o verdadeiro sentido da história, com os duvidosos retornos ao historicismo) é a esperança que o Brasil não enverede mais uma vez no mesmo caminho de sociedades culturalmente falimentares.
Por quanto se refere à dita cadeirinha, toda de madeira e sem estofado, é de observar: os Autos da Idade Média eram apresentados nas praças, o público de pé e andando. Os teatros grego-romanos não tinham estofados, eram de pedra, ao ar livre e os espectadores tomavam chuva, como hoje nos degraus dos estádios de futebol, que também não têm estofados. Os estofados aparecem nos teatros áulicos das cortes, no setecento e continuam até hoje no “confort” da Sociedade de Consumo.
A cadeirinha de madeira do Teatro da Pompéia é apenas uma tentativa para devolver ao teatro seu atributo de “distanciar e envolver”, e não apenas de sentar-se.
BARDI, Lina Bo. SESC – FÁBRICA DA POMPÉIA – Anotações pessoais apud Lina Bo Bardi / Marcelo Carvalho Ferraz, org. – 4.ed. – São Paulo: Instituto Bardi: Casa de Vidro: Romano Guerra Editora, 2018, p. 226.
Uma galeria subterrânea de ‘águas pluviais’ (na realidade o famoso córrego das Águas Pretas) que ocupa o fundo da área da Fábrica da Pompéia, transformou a quase totalidade do terreno destinado à zona esportiva em área “non edificandi”. Restaram dois ‘pedaços’ de terreno livre, um à esquerda, outro à direita, perto da ‘torre-chaminé-caixa d’água – tudo meio complicado.
Mas, como disse o grande arquiteto norte-americano Frank Lloyd Wright: ‘As dificuldades são nossos melhores amigos’.
Reduzida a dois pedacinhos de terra, pensei na maravilhosa arquitetura dos ‘fortes’ militares brasileiros, perdidos perto do mar, ou escondidos em todo o país, nas cidades, nas florestas, no desterro dos desertos e sertões. Surgiram, assim, os dois ‘blocos’, o das quadras e piscinas e o dos vestiários. No meio, a área “non-edificandi”. E… como juntar os dois ‘blocos’? Só havia uma solução: a solução aérea, onde os dois ‘blocos’ se abraçam através de passarelas de concreto protendido.
Tenho pelo ar-condicionado o mesmo horror que tenho pelos carpetes. Assim, surgiram os ‘buracos’ pré-históricos das cavernas, sem vidros, sem nada. Os ‘buracos’ permitem uma ventilação cruzada permanente.
Chamei o todo de ‘Cidadela”, tradução da palavra inglesa “goal”, perfeita para o conjunto esportivo.
Na área “non-edificandi” pensei num grande deck de madeira. Ele corre de um lado ao outro do ‘terreno proibido’ em todo o seu comprimento; à direita, uma ‘cachoeira’, uma espécie de chuveiro coletivo ao ar livre.
Meu grande amigo Eduardo Subirats, filósofo e poeta, diz que o conjunto da Pompéia tem um poderoso teor expressionista.
É verdade e isto vem de minha formação européia. Mas eu nunca esqueço o surrealismo do povo brasileiro, suas invenções, seu prazer em ficar todos juntos, de dançar, cantar. Assim, dediquei meu trabalho da Pompéia aos jovens, às crianças, à terceira idade: todos juntos.
BARDI, Lina Bo. SESC – FÁBRICA DA POMPÉIA – Casa Vogue nº06, São Paulo, 1986 apud Lina Bo Bardi / Marcelo Carvalho Ferraz, org. – 4.ed. – São Paulo: Instituto Bardi: Casa de Vidro: Romano Guerra Editora, 2018, p. 231.
Tudo aquilo que os países ocidentais altamente desenvolvidos – incluímos nesses países também os Estados Unidos – procuraram e procuram, o Brasil já o detém, é a mínima parte de sua cultura.
Somente que: o detentor desta total liberdade do corpo, desta desinstitucionalização, é o POVO, esse é o modo de ser do Povo Brasileiro, ao passo que, nos países ocidentais altamente desenvolvidos, é a classe média (incluindo nesta classe um certo tipo de intelectual) que procura angustiosamente uma saída de um mundo hipócrita e castrado cujas liberdades eles mesmos destruíram há séculos.
A importação para o Brasil deste sentimento de procura estéril e angustiada é um delito que pode levar à castração total.
Nas grandes civilizações do Extremo Oriente como o Japão e a China, a postura cultural do corpo (corpo como “mente”) e o exercício físico coexistem. No Brasil coexistem também, só não existem na classe média, e o verdadeiro problema é uma ação para o auto conhecimento de baixo para cima e não de cima para baixo.
A respeito do Centro da Pompéia, o Centro Esportivo é o Centro Esportivo, Físico, dedicado especialmente aos jovens das padarias., açougues, quitandas, supermercados, lojas e lojinhas que os frequentavam antigamente como eu os vi em ’76 e ’77, e que hoje sentem-se desfraudados. Para Homens e Mulheres, o domínio físico tem limites de idade. Para as crianças também, que poderão ocupar o espaço desde o começo definido como “Palestra”, no “Estudo” Espaço NOBRE, no sentido latim da palavra., espaço também dedicado a festas, reuniões e dança. Os espaços de um projeto de arquitetura condicionam o homem, não sendo verdadeiro o contrário, e um grave erro nas determinações e uso desses espaços pode levar à falência toda uma estrutura.
O enorme sucesso desta primeira experiência na Fábrica da Pompéia denuncia claramente a validade do “Projeto Arquitetônico” inicial.
BARDI, Lina Bo. SESC – FÁBRICA DA POMPÉIA – Anotações pessoais apud Lina Bo Bardi / Marcelo Carvalho Ferraz, org. – 4.ed. – São Paulo: Instituto Bardi: Casa de Vidro: Romano Guerra Editora, 2018, p. 234.